Um testemunho,<br>e depois

Correia da Fonseca

A RTP transmitiu há dias o documentário «O Padre das Prisões», da autoria de Daniela Leitão, Inês Leitão e Ricardo Vieira. O filme fala-nos da actividade do padre João Gonçalves, da diocese de Aveiro, que há muito se dedica a visitar prisões e a levar aos presos palavras e também actos que os ajudem a suportar as condições a que estão submetidos. Ao longo do documentário, o padre João Gonçalves não deu sinais de ter fortes preocupações de ordem política: é decerto um homem de marcado sentido religioso, isso sim, e é um cristão com tudo o que isso verdadeiramente implica ou deve implicar também no plano social, quer se queira ou não. Toda a gente sabe, ou pode saber se o quiser (pois bem sabemos que há muitos que preferem esquecê-lo) que a condição de cristão implica a presença de valores fundamentais: a solidariedade sob esta ou outra designação, o dever da partilha, o amor da justiça, coisas assim. Até caberia aqui uma referência talvez um pouco demorada ao actual Papa, mas será mais conveniente passar de largo sobre esse ponto aliás já muito visitado. Voltando ao padre João Gonçalves, até porque ele e o seu trabalho é que estiveram recentemente nos nossos televisores se sintonizados na «2», refiramos que as suas palavras estiveram em muitos momentos impregnadas de amargura e até de algum sentimento de impotência. Porque ele visita as prisões e não gosta do que vê. E, não gostando, pouco mais acha que pode fazer do que distribuir belas palavras, o que sem dúvida é bom mas corre o grande risco de não remediar muito. Não o censuremos argumentando que é pouco: talvez não se contem pelos dedos de muitas mãos os homens como ele que se apliquem a tarefas equivalentes com sentido de verdadeira fraternidade e que dêem o passo seguinte e mais raro que conduz a uma mais inteira e consequente coerência com os tais valores cristãos, fundamentais mas muitas vezes omitidos. É um passo que não está ao alcance de todos. Bem o sabemos nós, os que lemos este jornal e que nestes dias intensos andamos mobilizados pela alegria de termos entre nós um raro exemplo dessa coerência alargada e total com a fraternidade que é cristã, mas não só.

Má árvore e frutos podres

Voltamos, porém, ao padre João Gonçalves, agora para registar palavras suas que valeram por muito mais que uma observação, que tiveram algum significado de diagnóstico. «-A prisão cheira a pobreza!», disse ele. Não se referia decerto ao ambiente prisional e às suas condições, mas sim a um outro ambiente: aquele em que terá vivido a generalidade dos homens ali encerrados, onde radicam as circunstâncias que levaram grande parte deles, se não a sua maioria, a percorrer caminhos que desembocaram na prisão. O cheiro de que falou o padre João Gonçalves é, pois, o da sociedade que gera as condições que propiciam as diversas formas de delinquência como a má árvore gera os frutos podres. Sabemos que é assim, tal como João Gonçalves o saberá ainda que o cale por entender talvez que a sua específica tarefa tem fronteiras que não quer ultrapassar; sabemos da árvore e dos seus frutos que não se limitam a produzir o «mau cheiro» de que João Gonçalves se queixou num desabafo que tem o valor de um aviso; sabemos do que é imperioso fazer. Por isso nos alegramos, nem é excessivo dizer que nos orgulhamos, por termos connosco quem, porventura mantendo ainda alguma remota proximidade com o padre João Gonçalves, sabe da necessidade de não apenas denunciar o «cheiro a miséria» mas também de combatê-lo nas condições que o produzem. Em verdade, é certo serem diversos os caminhos da solidariedade e do que poderá designar-se por fraternidade activa, mas não é menos certo que alguns caminhos são mais amplos do que outros. O caminho percorrido pelo padre João Gonçalves é sem dúvida muito meritório, mas sabemos de quem, incapaz de suportar com resignação o «cheiro a miséria» e o monturo de que ele se desprende, se juntou a milhares de outros para uma tarefa maior. Em que, bem se sabe, cada um de nós quer e deve estar.




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